domingo, 14 de dezembro de 2014

A COMPOSITORA CAROLINA MARIA DE JESUS (1914-1977)



Em 1987 saiu publicado meu livro Mulheres compositoras – Elenco e repertório, convênio do Instituto Nacional do Livro e Roswitha Kempf Editores. Nos cerca de dez anos que passei pesquisando e escrevendo este livro, uma das grandes surpresas que tive foi descobrir o disco Quarto de despejo (RCA Victor), de 1960, só com músicas de Carolina Maria de Jesus, também intérprete. Estas músicas, que na gravação são apresentadas com orquestra e às vezes também coro, foram editadas em álbum de partituras, em arranjos para piano. Um exemplar desse álbum pertence ao acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga, do Centro Cultural São Paulo.

Li essas partituras, por ocasião da publicação do meu livro. Em outras fontes, encontrei referência a outras duas músicas de sua autoria, que não integram o LP: Maria e Quem foi que disse?

A leitura das partituras me impressionou muito, pela realidade que de repente se tornava um recorte musical diante de meus olhos, realidade que fotografa o que eu vi durante toda a vida. Como, aliás, todos os brasileiros vêm, embora muitos prefiram fechar os olhos. Mas, sinceramente, a leitura das partituras não se compara ao impacto da audição dessas músicas, pela própria voz dela, cheia e grave.
Nascida em 1914, ano em que eclodiu a cruel Primeira Guerra Mundial, Carolina, que provavelmente nunca estudou história, coloca a questão do que é a guerra para o pobre e o rico com uma assustadora clarividência: “Rico faz guerra, pobre não sabe porquê, pobre vai na guerra, tem que morrê” (O pobre e o rico, batuque). Na verdade, neste batuque ela expressa bem o que ocorreu na Europa, no período de seus primeiros anos de vida. Mas essa composição é atemporal, pois todas as guerras mostram claramente o desrespeito dos chefes de estado em relação às populações de seus países. E esse desrespeito continua, já que as guerras se multiplicam.  

Em geral, seus temas são do cotidiano, descritos com aguda observação e certo humor cáustico: Ra-re-ri-ro-rua, marchinha; A vedete da favela, samba; Pinguço, marcha; Acende o fogão, baião; O pobre e o rico, batuque; Simplício, samba; O malandro; Moamba, samba-toada; As granfinas, moda de viola; A Maria veio, baião; Quem assim me  vê cantando, valsa; Macumba, samba. 

Suas músicas são simples, mas de uma expressividade chocante.  Sobretudo porque a simplicidade de música e texto, de cada uma delas, é tão essencial que chega ao âmago de cada questão abordada.  Da mesma maneira que seu livro Quarto de despejo, também publicado em 1960.

Pena que o público leitor e ouvinte dos anos sessenta tenha feito como Pôncio Pilatos e lavado as mãos. E depois permanecido de cara lavada, ignorando, censurando e, principalmente, negando toda a verdade expressa. Como ela diria: “abluíram-se”. Ou que esse mesmo público tenha desviado a atenção para outros aspectos, bem secundários, diante de questões tão cruciais que ali estão. 

Edy Lima, jornalista, escritora e teatróloga, escreveu uma adaptação teatral do livro Quarto de despejo. Em Casa de alvenaria, segundo livro de Carolina, e que não obteve o mesmo sucesso, ela conta, no capítulo final, que foi assistir à estreia da peça Quarto de despejo. Terminado o espetáculo, o público começou a discutir, não a cruel realidade de grande parcela de nosso povo, mas se era válido colocar palavrões em textos teatrais...

Carolina conta que se levantou, retirou-se do recinto e ninguém percebeu!

Provavelmente seu segundo livro, os que foram publicados depois, e mesmo seu disco, talvez nunca tenham sido comentados, resenhados e criticados como Quarto de despejo. Mas, assim como vale a pena ler todos os livros, vale a pena também ouvir as músicas do disco, interpretadas pela própria Carolina, e que estão disponibilizadas no YouTube. 

Muitos escritores e compositores levantaram a questão da miséria, da negritude e da mulher. Com muita propriedade, sem dúvida. E todos eram homens. Mas quem coloca a questão olho no olho, da mulher negra, miserável, favelada, em queda de braço com a fome, diante de uma sociedade que era, e continua arrogante e indiferente, é Carolina Maria de Jesus. Que já morreu, mas que continua aqui, em cada esquina, em cada favela, embaixo de cada viaduto. E cujo grito não há de ser calado. 
 

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

CÉCILE CHAMINADE E AMY MARCY BEACH



A compositora francesa Cécile Chaminade (1857-1944) e a estadunidense Amy Marcy Cheney Beach (1867-1944) são compositoras que sempre aparecem em obras de referência, isto é, dicionários e enciclopédias de música. Ambas completam 70 anos de falecimento agora em 2014, e passam a ter suas obras em domínio público, embora estas nunca tenham deixado de ser  interpretadas, no decorrer deste período.

Amy nasceu em família musical, com mãe pianista e cantora, estudou em Boston e atuou bastante como pianista, instrumento no qual estreou aos 16 anos, tocando um concerto de Ignaz Moscheles. Por algum tempo, foi solista frequente da Orquestra Sinfônica de Boston e outras grandes orquestras, além de fazer recitais de piano solo. Casou-se em 1885 com o Dr. Beach, e por insistência dela mesma, passou a assinar Mrs. H. H. A. Beach (o nome dele). Embora tenha estudado harmonia com Julius W. Hill, foi autodidata em contraponto, composição e orquestração, e depois de casada, passou a se dedicar primordialmente a compor. Só voltou a atuar como pianista depois de 1910, quando seu marido morreu; passou então 4 anos na Europa, onde se  apresentou em  Roma, Paris e Berlim. Voltando aos Estados Unidos, continuou compondo e tocando.

Amy foi a primeira estadunidense a compor uma obra orquestral de porte, a Sinfonia em mi menor op. 32, Gaelica, que estreou em 1896, pela Orquestra Sinfônica de Boston. Escreveu também uma ópera, Cabildo e, em 1899, o Concerto para piano em dó sustenido menor op. 45. Compôs também 4 cantatas seculares, no conjunto de uma extensa obra vocal que inclui cerca de 200 peças para canto e piano, obras corais, uma Missa e diversas outras obras sacras.
A Discoteca Oneyda Alvarenga, do Centro Cultural São Paulo, possui dela a partitura de seu Tema e variações para flauta e quarteto de cordas op. 80; e muitas de suas obras podem ser ouvidas no YouTube.   

Embora sua família não fosse propriamente de musicistas, Cécile também recebeu os primeiros ensinamentos da própria mãe, pianista e cantora. Começou a compor já na infância, e foi recomendada por Georges Bizet para desenvolver estudos musicais, o que fez com os renomados  professores franceses de sua época – mas em aulas particulares, já que o pai não consentiu que frequentasse o Conservatório de Paris. Começou a tocar em público aos 18 anos e logo foi convidada para uma turnê na França e na Inglaterra. O sucesso de suas peças pianísticas foi imediato, depois de estréias em que foram interpretadas por ela mesma.

Muitas de suas cerca de 200 obras para piano e 125 canções foram escritas com vistas à publicação e por isso ela é, até hoje, uma das compositoras mais editadas.  Mas seu repertório abrange também peças de mais fôlego, como a Suite d’orchestre op.20 (1881), Les amazones, sinfonia dramática op. 26 (1888), La Sévillane, ópera cômica (1882), Callirhoe, balé-sinfonia para grande orquestra, 2 trios com piano op. 11 (1881) e op. 34 (1887), Concertino para flauta op. 107 (1902) e Concerto para  piano e orquestra  (1893).

Um de seus Estudos de Concerto op. 35 (nr 2, Outono), seu Concertino para flauta op. 107 e sua Scarf Dance , trecho do balé Callirhoe (popularizada em inúmeras antologias de música pianística) são peças até hoje tocadas e gravadas, e podem ser facilmente recuperadas no YouTube, em excelentes gravações.

O Concertino para flauta, em sua versão flauta e piano, foi gravado inclusive pelo duo Irmãos Carrasqueira (Maria José e Antonio Carlos), ainda em LP, e foi apresentada em  São Paulo   pelo flautista Renato Camargo, com acompanhamento de banda.

Os compositores brasileiros, em geral, escrevem poucos concertos ou concertinos, devido à grande dificuldade de conseguir orquestras que os toquem. Além disso, a preparação do material orquestral é cara e dificultosa. Temos, entretanto, obras do gênero escritas por Heitor Villa-Lobos, Francisco Mignone e Oscar Lorenzo-Fernandez. Temos também o Concerto em formas brasileiras de Hekel Tavares, talvez o mais famoso e mais apresentado. 

Mesmo diante de inúmeras dificuldades, duas compositoras brasileiras escreveram concertos para piano: Clarisse Leite e Najla Jabor. O Concerto para piano e orquestra de Najla Jabor é de 1953 e estreou em Recife, pelas mãos da pernambucana, pianista e também compositora Graciette Câmara Quadros.

Najla Jabor terá seu centenário de nascimento no próximo ano de 2015.
 
Clarisse Leite escreveu dois Concertos para piano e orquestra: o primeiro é de 1972 e o segundo, para piano, orquestra, órgão e coral, de 1975, não é só para piano: é um concerto tríplice. Não temos notícia da estréia de nenhum dos dois, apesar da popularidade da compositora.

Hoje há uma crescente procura por obras de mulheres compositoras, cujas apresentações são cada vez mais frequentes. Mas as performances se restringem, em âmbito mais tradicional, em peças para piano, ou canto e piano; em âmbito mais atual, em peças de conformação não estritamente tonal, e de discurso musical de sintaxe mais abrangente. As óperas de Jocy de Oliveira, substancialmente performáticas, as peças de caráter indigenista de Maria Helena Rosas Fernandes, a obra nacionalista de Kilza Setti e Adelaide Pereira da Silva, as compositoras mais recentes, Marisa Rezende, Silvia de Lucca, Denise Garcia e Valéria Bonafé, entre outras, vêm encontrando espaço entre solistas e orquestras.

Sempre me entristece lembrar um regente brasileiro radicado na Europa, que teve oportunidade de conhecer meu livro Mulheres Compositoras – elenco e repertório. Ele comentou comigo que achou o livro notável, mas que a obra de mulheres compositoras é “curiosidade”.

Será mesmo? 

Só o tempo dirá.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

DA BELLE-ÉPOQUE AOS NOSSOS DIAS, COMPOSITORAS AINDA LEMBRADAS



Nascidas na mesma época, mas em países e continentes diferentes, a estadunidense Carrie Jacobs-Bond (1862-1946); a francesa Helen Guy (1858-1936), que com o pseudônimo Guy d’Hardelot trouxe a público suas composições, e a inglesa Amy Woodforde-Finden (1860-1919), compuseram canções que ainda hoje são ouvidas e apreciadas.

Tiveram histórias pessoais muito diferentes: Carrie Jacobs-Bond começou a publicar suas obras em 1894, e quando morreu o segundo marido, criou uma editora e passou a se dedicar à vida artística. O barítono David Bispham realizou em 1901 um recital só de obras dela, e no mesmo ano seu grande sucesso, I Love you truly, vendeu cerca de um milhão de cópias da partitura. Em 1910, A perfect Day vendeu oito milhões de cópias da partitura e cerca de cinco milhões de gravações. Lembremos que, mesmo nos Estados Unidos, a indústria fonográfica ainda estava começando nessa época.

Helen Guy é ainda hoje mais conhecida como Guy d’Hardelot – Hardelot era o nome do castelo onde nasceu, na França. Aos 15 anos foi para Paris, onde estudou música e, antes dos vinte anos, começou a fazer sucesso com a canção Sans toi, com texto de Victor Hugo. Entre os intérpretes que lançaram suas canções estão a australiana Nellie Melba, soprano (1861-1931), o barítono francês Victor Maurel (1848-1923) e o baixo francês Pol Plançon (1854-1914). Com a famosa Emma Calvé, soprano francesa (1858-1942), atuou como pianista acompanhadora em recitais nos Estados Unidos. Casou-se com um inglês e foi morar em Londres, onde sua canção Because, com texto de Edward Teschemacher, de 1902, permaneceu por muito tempo nos programas de recitais.

Amy Woodforde-Finden, que nasceu no Chile, onde seu pai atuava no consulado inglês, começou a compor muito cedo, mas suas primeiras obras passaram despercebidas.  Em 1893 casou-se com um médico-coronel inglês, e, morando na Índia, escreveu em 1902 Four Indian Love Lyrics, com texto de Laurence Hope (pseudônimo de Adela Florence Nicholson, 1865-1904). Novamente não teve sucesso e ela mesma as editou. Mas, apresentadas pelo cantor Hamilton Earle, estas canções obtiveram grande sucesso e foram publicadas pela Boosey & Co. Compôs ainda outras canções, muitas relembrando seus tempos no Chile, mas seu maior sucesso foi sempre Kashmiri Love Song, ou Pale hands I Love, como também é conhecida, nr. 3 do ciclo mencionado.

I Love you truly, de Carrie Jacobs-Bond, pode ser ouvida no YouTube por pelo menos 15 diferentes intérpretes, de diferentes épocas. Aparece também em dois diferentes filmes recentes, como Out of the wedding, de 2007, e o famoso Titanic, neste cantada por Elsie Baker em gravação de 1912, ano em que ocorre o naufrágio. Nelson Eddy, famoso barítono americano, estudou canto com David Bispham, que lançou esta canção. Eddy a interpreta em duo tanto com Jeanette MacDonald, sua parceira mais frequente, como com Jo Stafford.
Because, de Guy d’Hardelot, aparece no YouTube em 20 gravações, cantada em inglês, francês, sueco e espanhol, e ainda em solo de piano por Phillip  Sear. Enrico Caruso, Mario Lanza, novamente Nelson Eddy, Kathryn Grayson, e os atuais Jose Carreras e Andrea Bocelli, todos podem ser ouvidos em diferentes interpretações e em seus variados timbres. Perry Como, em gravação de 1947, canta de forma não operística e teatral, mas como se canta a música popular.

Kashmiri Love Song, de Amy Woodforde-Finden, também é prestigiada por vinte gravações, algumas bem recentes. De forma instrumental, Stephen Hough interpreta a versão pianística da própria autora; Carmen Dragon rege a Capitol Symphonic Orchestra, e Julian Lloyd Weber e John Lanehan a tocam ao violoncelo acompanhado de piano. Ela é cantada em inglês por Rodolpho Valentino, mito do cinema, em gravação de 1923. Às vezes os cantores são acompanhados por piano, e às vezes por orquestra. Nelson Eddy e Peter Dawson cantam as quatro canções do ciclo, não apenas a mais famosa.

As três compositoras são contemporâneas de Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Note-se que algumas das peças de Chiquinha que ainda permanecem no repertório são mais ou menos da mesma época. Com exceção da marcha Ô abre-alas, que é carnavalesca, ou o batuque Corta-Jaca, música de dança de influência africana, muitas de suas obras que ainda são relembradas apresentam o mesmo caráter, sentimental e dramático, daquelas canções. Por exemplo, Lua Branca. Influência, talvez, um pouco da ópera e muito da opereta, gêneros muito cultivados no decurso da vida de todas estas compositoras. 

Entretanto, só Chiquinha Gonzaga atuou, no decorrer de grande parte de sua vida profissional, diretamente no teatro musicado. Mas as outras três viviam em situação familiar bem mais confortável, e em países onde a atividade de compositor é remunerada, reconhecida e prestigiada em sua própria terra, antes de ser levada para outros países.