terça-feira, 29 de junho de 2010

ENTREVISTA COM A PIANISTA VALDILICE DE CARVALHO

No dia 1 de maio último, o CD EM TEMPO DE VALSA, da pianista Valdilice de Carvalho, foi lançado no Centro Cultural São Paulo, em um recital com algumas das valsas, às 18 horas, na Sala Adoniram Barbosa. O evento, que se somou às comemorações dos 63 anos da Biblioteca Braille, do mesmo Centro Cultural, teve um público animado e foi seguido de um coquetel.

Note-se que familiares de alguns dos compositores gravados no CD estiveram presentes, e quatro compareceram pessoalmente. Entre esses, dois compositores consagrados: Almeida Prado e Sérgio Vasconcellos-Correa.

Aproveitamos o ensejo para conversar brevemente com Valdilice sobre sua carreira e seus projetos, iniciando uma série de entrevistas com intérpretes destacados que enfocaram em seu trabalho as Mulheres Compositoras. Valdilice, em 1991, foi a primeira pianista que se interessou por conhecer as obras indicadas em meu livro Mulheres Compositoras – Elenco e Repertório, lançado em 1987. E desde então as tem apresentado no Brasil e no exterior.

N – Antes de começar a tocar especificamente obras de Mulheres Compositoras, o que você pensava sobre o assunto?

V – O repertório diversificado sempre me interessou. Em 1973 fiz recitais com compositores nórdicos – dinamarqueses e suecos, que são pouco conhecidos entre nós. Em 1991, quando tive a possibilidade de conhecer as obras de Mulheres Compositoras, escolhi as músicas pela qualidade que apresentavam, e estudei o que fosse mais viável e interessante para mim.

N – Como foi a receptividade do público, quando você começou a tocar metade do repertório de seus recitais com obras de Mulheres Compositoras? No Brasil e no Exterior?

V – As Mulheres Compositoras foram apresentadas na Holanda, Suíça e Itália. O público europeu é mais reservado que o nosso, mas de um modo geral houve interesse. Gosto de apresentar as Mulheres Compositoras entre obras masculinas, de autores consagrados ou não, pois não quero rótulos.

N – Qual a compositora brasileira mais aplaudida?

V – Najla Jabor.

N - Quais as diferenças entre as compositoras brasileiras e estrangeiras?

V – De um modo geral, o repertório escrito por mulheres, do ponto de vista da execução, apresenta uma comodidade maior que o repertório masculino, pela conformação das mãos, que são menores. O repertório masculino apresenta quase sempre essa dificuldade. Quando faço um novo repertório, escolho músicas com as quais sinto afinidade e vejo valor musical. Acho que é uma questão de se apaixonar por cada música escolhida.

N – Você toca música contemporânea?

V – Não tenho nada contra, mas toco no máximo Gilberto Mendes e Almeida Prado. Não sou fechada a essa linguagem, mas ainda não a adotei.

N - Como você escolhe o que vai tocar?

V – Às vezes, o autor vem ao meu encontro. Acontece, como aconteceu com as obras da compositora cubana Cecília Arizti. As Mulheres Compositoras constituem uma das facetas do meu repertório. Acho que inseridas num universo maior, é mais viável que se tornem conhecidas.

COMPOSITORAS GRAVADAS EM CD POR VALDILICE DE CARVALHO
Páginas brasileiras 2004

Dos 16 autores gravados, 5 são mulheres: Clarisse Leite, com Marquesa de Santos, minueto (1973); Sandra Abrão, com Sugestão nativa (1980); Maria Aparecida Côrtes Macedo, com Carissima, mazurca(1981); Norzinha Pierri Martins, com Improviso nr 1 (1985) e Najla Jabor, com Jongo (1952).

Viagem 2006

Dos 19 autores gravados, de Cuba, Espanha, Brasil e Portugal, 2 são mulheres: a brasileira Emilia De Benedictis (com a música Viagem, que dá nome ao CD) e a portuguesa Emilia Resende, com Paisagem op.2 nr. 1.

Estes CDs, bem como os outros CDs de Valdilice (Luis e Alexandre Levy e Valsas Brasileiras) podem ser encontrados também na Livraria Cultura, Livraria da Vila, Revista Concerto e Sala São Paulo.

Nilcéia C. S. Baroncelli

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE DINORÁ

Dinorá de Carvalho deixou em meu espírito impressões pessoais profundas, apesar do pouquíssimo contato que tivemos. Toda vez que subo a um andar alto de um edifício lembro-me de suas palavras: “Gosto de morar em andares altos, porque um artista gosta de ficar longe do barulho, vendo a lua mais de perto...” Nunca esqueci e tenho bem presente a consciência que ela manifestava em relação a seu próprio trabalho: “Experimentei de tudo em música, tentei todos os caminhos, me renovei sempre”. E é verdade.

Tenho na memória também um certo tom de rosa, forte, que ela gostava, e que identifico tanto com ela que acho que poderia se chamar o “rosa-Dinorá”. Era o tom das colchas de cetim matelassê nas camas gêmeas, que me mostrou, ainda inconformada com a doença e o falecimento do marido.Por coincidência, era o mesmo tom do vestido que ela vestia naquele dia. Como esquecer aquela senhora de oitenta e tantos anos absolutamente inconfessos (ah! A vaidade feminina!) ágil o suficiente para sentar no chão, arrumando com graça e donaire a saia em volta de si? Estávamos devassando todos os seus armários de música, em busca de seus manuscritos, que espalhamos pelo chão, tantos eram eles...

Estes rápidos toques pessoais de Dinorá não estão ausentes de sua obra. Consciente de seu papel de verdadeira artista, ela sempre se manteve em nível elevadíssimo de criação e interpretação, em todos os idiomas musicais que adotou. Passando por muitas correntes, aprofundou mais a linguagem nacionalista. São de sua fase nacionalista a maioria das músicas que hoje em dia são interpretadas. Mas, em toda oba de sua lavra, há um substrato, uma cor própria, um !tom-Dinorá” que se impõe e revela seu íntimo, sua unidade de criação. E que é reflexo, com certeza, da chama de vida e lucidez que manteve resplandescente até seu último alento.

(Escrito para as comemorações do Centenário de Dinorá de Carvalho
(1.6.1895-28.2.1980), realizadas no dia 23.5.1996)

quarta-feira, 9 de junho de 2010

EM TEMPO DE VALSA... EM TEMPO DE BOA MÚSICA

Em tempos de violência, banalidades, falta de interesse pela boa música, este é um oásis de 71:04 minutos, onde, entre outras especificidades, das que caracterizam os verdadeiros artistas, está a presença de 4 compositoras. Como o CD tem 18 músicas, esta é uma proporção muito boa para a música erudita, gênero em que as mulheres ocupam uma parcela de apenas 10 % (ou menos) entre os compositores.

Valdilice prima por buscar linhas diferenciadas de interpretação. E foi com esse intuito que começou a se interessar e a tocar em público obras de mulheres compositoras. Desde 1991 vem trabalhando autoras de diversas nacionalidades, mas prestigiando sobretudo as brasileiras, que já divulgou em 3 países europeus.

A Valsa se revela, neste CD, na unidade e na diversidade das linhas estilísticas, na simplicidade ou na complexidade do procedimento composicional de cada autor. É todo em 3 tempos – o compasso da valsa – mas não é repetitivo. Compositores brasileiros consagrados, como, no passado, Henrique Oswald, Carlos Gomes, Custódio Fernandes Góes e Alberto Nepomuceno, e, no presente, Almeida Prado e Sérgio de Vasconcellos-Corrêa, estão ao lado do seresteiro Tristão Júnior e dos italianos, ligados ao Brasil, Gaetano Foschini e P. Nimac. Os dois russos, P. Tchaikovsky e V. Rebikov, somam sua inspiração à do polonês S. Moniuszko e à do tcheco Anton Dvorák. O francês Theodor Lack encerra com grande brilho o CD.

Mas, já que nosso tema principal são as Mulheres Compositoras, observamos que a Valsa Lenta op. 8, da cubana Cecilia Arizti (1856-1930), apresenta traços impressionistas não muito comuns entre os compositores de sua geração, que em geral tendem mais ao romantismo. A brasileira Dinah Menezes, carioca, estudou com Villa-Lobos e dele recebeu apoio. Dedicou parte de sua vida ao ensino de música para crianças, mas é compositora inspirada e sua Valsa Predileta faz sucesso sempre que apresentada em recitais.

Ignez Lepsch, que, como Tristão Júnior, é de Itu, cidade paulista de tradição musical respeitável, apresenta um traço que é comum entre as compositoras: fazer música em casa e em ambientes familiares. E isto, como temos verificado ao longo de nosso tempo de estudo de obras de Mulheres Compositoras, não diminui o mérito de seu trabalho, nem a qualidade final de sua composição Meus Filhos.
Finalmente, devo dizer que, cerca de 20 anos atrás, foi difícil convencer os intérpretes a tocar obras de Mulheres Compositoras. Então, em reconhecimento, comecei a dedicar obras aos que o fizeram. E Valdilice de Carvalho, a primeira pianista que se interessou pelo assunto, formando um programa de recital a partir das indicações de meu livro Mulheres Compositoras - Elenco e Repertório, recebeu a valsa Fim de filme como um agradecimento. E agora, agradeço novamente, pela bela leitura e interpretação inspirada com que fez a gravação para seu CD Em tempo de Valsa.

Nilcéia C. S. Baroncelli

P.S.: Em tempo de Valsa se encontra à venda na Livraria Cultura, na Livraria da Vila, em São Paulo, e através da Revista Concerto.
Em tempo de Valsa será comentado no programa Tema e Variações, apresentação do Maestro Júlio Medaglia, pela Radio Cultura – FM 103.3, sábado, 12.6.2010, às 11 horas da manhã.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

ROSÁRIA GATTI - HOMENAGEM A GRANDES MULHERES

Há maneiras muito variadas de recuperar o repertório de Mulheres Compositoras. E, pela somatória de todas essas maneiras e toda essa variedade, chegaremos ao resultado final mais desejável: que as obras escritas por mulheres passem a integrar repertórios de todos os gêneros, sem qualquer espécie de discriminação.

Pois essa tendência se manifestou claramente na “Homenagem a Grandes Mulheres”, feita pela pianista paulistana Rosária Gatti no dia 23 de maio p.p., na Sala dos Espelhos do Memorial da América Latina. Na primeira parte, ela prestigiou as “Mulheres que inspiram compositores”: Glória, de Bonfiglio de Oliveira; Victória, de Ernesto Nazareth; Iara, de Anacleto de Medeiros; Dona Nega, de Izaías de Almeida; Celiza, de Joubert de Carvalho; Marilene, de Pixinguinha. Ao fim de cada música – e todas são muito bonitas – ela oferecia uma rosa vermelha às mulheres presentes, que tivessem o mesmo nome.

Essa primeira parte expressou sobretudo muita simpatia pelo tema, simpatia que transparece na maneira como ela fala e toca: com simplicidade, conversando com o público. Mais que simpatia; é empatia verdadeira, pois se percebe claramente que ela se identifica com a faceta brejeira da música brasileira. Com muita naturalidade, Rosária Gatti soma sua técnica de pianista de formação clássica com a ginga e o requebro dos chorinhos, polcas e valsas que escolheu com muito bom gosto.

AS MULHERES COMPOSITORAS

As nove compositoras escolhidas foram seqüenciadas de forma a alternar características de gênero e estilo. Quem abriu alas para esta segunda parte foi, é claro, Chiquinha Gonzaga, que neste ano completou 75 anos de falecimento (17.10.1847-28.02.1935). Janiquinha, a peça escolhida, foi uma homenagem que Chiquinha fez a sua amiga, e também compositora, Joana Leal de Barros, carioca como ela, e que, entre os amigos, atendia por esse carinhoso diminutivo.

A compositora seguinte foi Dinorá de Carvalho, mineira radicada em São Paulo, com sua Toada Paulista, que, tocada em um andamento mais vivaz que da Toada, ganhou um jeitinho de choro. Dinorá atravessou décadas lecionando piano e compondo,e compôs em estilos variados. Sua Toada Paulista, como o nome revela, é dos tempos do nacionalismo. Também Dinorá teve uma data redonda em 2010, pois faleceu no mesmo dia e mês que Chiquinha, só que no ano de 1980.

Rachel Peluso, cuja integral da obra está depositada na Casa da Cultura de Santo Amaro, em São Paulo, foi representada pela valsa Ternura, uma de suas belas valsas e, como disse Rosária depois de apresentar a música, “é preciso ter muita ternura no coração para escrever uma obra assim...”

E a seguir, um choro: Zangado, de Inah Machado Sandoval. Dona Inah viveu bastante e, mesmo com muita idade, nunca perdeu a brejeirice e o bom-humor, que fica expresso inclusive nos títulos de suas músicas.

Lina Pires de Campos, famosa por suas aulas de alta interpretação pianística, e que foi professora de Rosária por 12 anos, foi representada por uma obra da mocidade, Por ti...chorei, que ainda está em manuscrito. Esta música é de quando ela ainda assinava Lina Del Vecchio – pois era da família fabricante dos famosos violões. A propósito: mais tarde ela estudou composição clássica e passou a ser considerada uma das representantes mais significativas da Escola Nacionalista de Composição,em São Paulo. Esta obra ainda é de sua fase popular, mas já mostra bom-gosto e inspiração.

Carolina Cardoso de Menezes, filha de um famoso compositor do começo do século, Osvaldo Cardoso de Menezes, fez carreira no rádio e em gravações e era mais intérprete (pianista) que compositora, pois deixou poucos títulos. Expressinho, o choro que foi apresentado, é um dos mais conhecidos, entre os de sua lavra.

Lina Pesce foi provavelmente a compositora de música instrumental mais popular no Brasil, depois de Chiquinha Gonzaga. Na década de 30, ganhou um prêmio num concurso de marchinhas de carnaval de São Paulo, com Você gosta de brincar. Na década de 40, seu choro Bem-te-vi atrevido, desafio (e dos grandes) para todos os pianistas, virtuoses ou não, foi gravado em órgão pela americana Ethel Smith, depois de integrar com sucesso o filme Twice blessed (Dupla ilusão). E ganhou mundo... Rosária a integrou ao elenco de compositoras do recital com o choro Elegante.

E aí, a Escola Nacionalista de Composição foi novamente representada por uma compositora viva, que bem merece ser sempre apresentada em recitais,e, felizmente, sempre está: Adelaide Pereira da Silva. Sua Valsa Choro nr. 2, estilização primorosa do gênero, com muitas dificuldades técnicas, reviveu os momentos de glória da Escola a que pertence, graças, inclusive, à interpretação correta e expressiva.

O recital foi encerrado com muito brilho, com a peça Correndo atrás, choro de grande brilho e velocidade, da compositora Maura Sandoval, filha de Inah Sandoval. Que esteve presente e recebeu as devidas homenagens, como se nela estivessem sendo homenageadas todas as compositoras.

Depois de um bis igualmente brilhante, o famoso Bem-te-vi atrevido, houve um congraçamento muito gostoso, entre artista e platéia, com distribuição de rosas vermelhas, manifestações e aplausos... Como se não estivéssemos em uma grande cidade, com milhões de habitantes, mas fôssemos, pela ação milagrosa da música, uma grande família: a família dos que ainda se sentem tocados pela nossa música, tão brasileira, tão rica, tão bela e quase sempre tão esquecida...