segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O GÊNERO DA MÚSICA – para compreender as vocações musicais


Em O GÊNERO DA MÚSICA – A construção social da vocação, a autora Dalila Vasconcellos de Carvalho empreende um trajeto cuidadosamente pensado: refaz a situação da música no Brasil e no Rio de Janeiro, antes do surgimento das duas personagens que são realmente o fulcro de seu trabalho, inicialmente um trabalho acadêmico orientado pela Profa. Dra. Fernanda Arêas Peixoto.

As duas personagens que Dalila analisa, Joanídia Sodré e Helza Cameu, nasceram na então capital federal no mesmo ano, 1903, e desenvolveram carreira como musicistas. De formação semelhante, encaminharam-se inicialmente para a carreira de concertista, um espaço sempre e ainda hoje muito incerto e oscilante em nossa sociedade. Esta, embora sancione positivamente o estudo do piano entre as mulheres, se mantém míope quanto à visualização do “como empregar” a longa e exaustiva trajetória de quem se dedica à atuação como intérprete, em um país onde faltam salas, falta interesse da mídia e, sobretudo, falta público. Por razões diversas, ambas estudam composição musical e adentram o meio dos compositores, onde até hoje os intérpretes resistem às obras compostas por mulheres.

Do perfil de ambas, pode-se dizer que são personalidades diferentes, que encaminham seus interesses na música em direções semelhantes. Ambas  se fixam em funções paralelas ao exercício da música propriamente dito, mas para as quais o conhecimento adquirido em seu tempo de estudo determina o bom desempenho nessas funções. (Em verdade, todos os que exercem essas funções deveriam ter bagagem  ampla e especializada, como elas, o que nem sempre acontece). Joanídia Sodré assume a direção do Instituto Nacional de Música, e Helza Cameu passa a trabalhar nos programas da Rádio MEC ao mesmo tempo em que se dedica à pesquisa de música indígena.

Apesar de Joanídia ter escrito uma ópera, com a qual ganhou uma bolsa de estudos para o exterior, hoje em dia praticamente não se conhece nada de sua autoria, em quanto Helza, cujos estudos de composição foram sempre orientados por brasileiros, continua despertando interesse das novas gerações.

Dalila de Carvalho, cuja formação universitária é em Ciências Sociais, estudou Música, e embora isso não seja posto em destaque, sua familiaridade com a situação das musicistas lhe dá uma justeza de critérios que permeia todo o texto. Ela combina uma avaliação cuidadosa da situação das carreiras ditas “femininas” e “masculinas”, das posturas sociais exigidas das mulheres, e da crítica sempre restritiva e ao mesmo tempo benevolente. Aproxima polos opostos, sem transformar a justa denúncia de suas palavras em panfleto feminista. Se o livro pode e deve ser lido pelo público em geral, deveria ser lido principalmente pelos músicos, entre os quais encontramos, até hoje, a reprodução de afirmativas tradicionais de posturas injustas e mal pensadas, de preconceitos, enfim.

CARVALHO, Dalila Vasconcellos de    O gênero da música – A construção social da vocação. São Paulo, Alameda, 2012. 209 p. com ilustrações.    

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

CLORINDA ROSATO E MARIO DE ANDRADE


O  interesse fundamental de Clorinda Rosato era o piano. Segundo sua irmã Adalgisa, ela, em pequena, se afastava das crianças, em locais onde houvesse piano, para poder ficar tocando, mesmo que o apelo dos amigos fosse forte e contínuo. 

O interesse de Mário de Andrade em seu lado criativo levou-a a compor sua obra, densa, de marca nacionalista inegável, apesar de muito pessoal. Apesar de  que ela não afirmou categoricamente ter sido orientada por Mário de Andrade no sentido de estudar composição, tendo escolhido Camargo Guarnieri e Martin Braunwieser como professores, pode-se imaginar que a escolha desses mestres tenha sido sugerida por ele.

Clorinda Rosato derivou, das composições pianísticas,  para obras de outros meios de expressão, como os corais, com os quais tornou seu nome conhecido e se manteve na programação do Teatro Municipal durante cerca de  30 anos (no Coral Paulistano). Criou também  algumas peças de câmara, como o Improviso pra Trio e Quatros Estudo para Quarteto de Cordas,  mas foi o piano sua principal fonte de inspiração e apogeu de sua criatividade.

Em recital que fez, a nosso pedido, através da Divisão de Discoteca e Biblioteca de Música, nome com o qual a antiga Discoteca Pública Municipal existiu entre fins da década de 70 e 80, ela apresentou diversas  obras suas,entre as quais a Sonata, de profunda inspiração e elaboração requintada. Com certeza uma das melhores sonatas para piano escritas no século XX.

Na década de cinquenta ela ainda tentava continuar a carreira de pianista e intérprete das próprias obras, mas os eventos em que atuou foram esporádicos. Que teria acontecido com ela, uma vez que nessa época ainda havia espaço  para apresentações pianísticas? Sua irmã Adalgisa e sua cunhada Myrta deram  algumas explicações, entre elas a morte dos pais, o casamento dos irmãos – um dos quais  acompanhava sempre as irmãs solteiras – mas sobretudo a perda de Mario  de Andrade, que mesmo depois de deixar o Departamento de Cultura e até deixar a cidade de São Paulo, continuava incentivando a jovem musicista.

Se sua notável capacidade de intérprete está hoje perdida, com certeza sua maravilhosa obra não está. Ela aguarda que alguém a descubra, recupere, edite, se for o caso, escreva sobre ela, e a traga de volta aos palcos, ou ao menos ao mundo das gravações. Clorinda Rosato  foi, pelo que ouvi e vi, um talento reconhecido por Mario de Andrade, que ele incentivou, e o testemunho da capacidade de grande intelectual de reconhecer esse talento, desde seu despertar até sua maturidade. As obras musicais que Mário encomendou a ela e encaminhou ao conhecimento do público, demonstram nele a capacidade de orientador, função que em outros tempos mais recentes poderiam frutificar com mais resultados. Mesmo que em decorrência de uma realidade que lhe foi hostil, o esquecimento em que ela mergulhou é de todo injusto e descabido, num momento em que tantos músicos e acadêmicos talentosos buscam temas para seus trabalhos.

Pois aí está Clorinda Rosato – 1913-1975. Uma revelação de Mário de Andrade. Um nome que merece voltar a ser lembrado.