O
crítico do New York Times, Donald Henahan, num artigo recente declara: “O longo
eclipse da mulher como compositora está chegando ao fim”. Para chegar a essa
conclusão, ele ouviu e analisou obras contemporâneas, e preconiza com
entusiasmo um lugar ao sol para as compositoras do presente e do futuro. Talvez
uma nova mentalidade em relação à mulher compositora esteja surgindo.
MULHER MUSICISTA, NA ANTIGÜIDADE
Não
existe referência direta à participação da mulher na atividade musical dos
povos antigos, pois não havia consciência da mulher como participante e, além
disso, há pouca informação sobre a música em si. Os antigos painéis egípcios
mostram sempre mulheres tocando instrumentos – os de sopro, principalmente,
seriam proibidos aos homens? Quer dizer que as mulheres tocavam – embora não se
saiba se elas compunham o que tocavam. Segundo L. Ellmerich, “também em Canaã,
que era fonte inesgotável de músicos, procuravam-se, principalmente, as
orquestras de mulheres e dançarinas”.
Na
Grécia, tocar flauta podia ser fator de ascensão social para a prostituta comum
– “pornai” – que passava a “alêutrida”. Indro Montanelli, que também afirma que
Aspásia foi a primeira feminista da História, conta que ela fez essa ascensão,
antes de tornar-se “hetera” (categoria mais elevada ainda de mulher livre);
depois, Aspásia casou-se com o estadista Péricles e chegou a fundar uma escola
de filosofia e letras para moças, que fechou logo depois, por ser motivo de escândalo.
Hoje
nossos hábitos artísticos são mais “especializados”, mas na Grécia escrever
poesia, criar música para ela, cantá-la e dançá-la era um só ato de criação.
Das quatro diferentes artes conjugadas de um autor grego, só a poesia pôde ser
grafada e conseqüentemente só ela chegou até nós. Por isso, hoje fala-se de
Safo como poetisa, quando ela foi também compositora de talento, ocupando lugar
de destaque entre os expoentes da Arte Grega, juntamente com Myrtis e Corinna
(outras compositoras), ao lado de Píndaro e Anacreonte. Como todo artista
atuante, Safo não foi poupada pela censura, que proibiu um “modo” (escala para
composição) criado por ela por ser considerado “lascivo”.
As
reuniões de família dos romanos eram animadas por audição de peças das damas,
que assim exibiam mais uma de suas prendas – como se fazer música fosse o mesmo
que executar uma toalha de crochê. Mas os romanos tiveram uma musicista que
passou para a História. Santa Cecília, mártir cristã, hoje padroeira dos
músicos.
NA SOCIEDADE OCIDENTAL
Na
Idade Média, não há quase referência ou ilustração sobre a atividade musical
feminina. Mas Tiana Amarante menciona o “Livro de Paula”, espécie de guia de
comportamento para meninas, no qual um Marcelino de Carvalho da época previne
que a menina não deve sequer tomar conhecimento da existência da música, a bem
de sua moral.
Apesar
da mentalidade vigente, uma grande figura de compositora surge na Idade Média –
e é importante notar que ela deixou seu nome, numa era de autores anônimos:
Santa Hildegard de Bingen. Alemã, também poetisa, ela viveu de 1098 a 1179 e
compôs cerca de setenta peças musicais religiosas e o drama Ordo virtutum.
À
medida em que termina a Idade Média, surge a ópera, delineia-se o balé, renasce
o teatro; mas a participação da mulher nessas atividades é por algum tempo
limitada. Até o século XVII, os papéis femininos eram sempre representados por
homens, que afinal eram as maiores vítimas dos preconceitos: eram castrados, ao
chegar à puberdade, para que suas vozes se mantivessem num registro agudo. Esse
costume, bárbaro para nossos padrões atuais, foi acabando pouco a pouco, mas
demorou para extinguir-se, pois o próprio Haydn (1732-1809), foi convidado a
castrar-se e seu pai não o permitiu.
COMEÇAM A SURGIR
COMPOSITORAS
O
fim da castração coincide com o aparecimento das primeiras compositoras, e não
por acaso. Tendo acesso à cena e à música, as mulheres puderam vir a ser
profissionais, o que lhes garantia melhor formação musical e a possibilidade de
mostrar o próprio trabalho.
O
número de compositoras vai aumentando à medida em que o tempo passa. Nascidas
no século XVII, temos cinco compositoras, das quais quatro são membros da
família Couperin, que, como a família Bach, sobejava em músicos. Já o século
XVIII registra treze compositoras. Amélie Julie Candeille e Maria Theresia von
Paradis parece que foram as de maior êxito; mas o mesmo século poderia ter
visto Anna Maria Mozart, talento precoce como o irmão, que não alcançou o
profissionalismo e a fama deste.
O
romantismo (século XIX) foi o período mais brilhante de nossa música ocidental
e é também o mais documentado. Além das vinte e uma personalidades femininas de
compositoras do período, merecem destaque especial Fanny Mendelssohn e Clara
Schumann.
Fanny
Mendelssohn foi a irmã de Felix e, como ele, recebeu primorosa educação
musical. Dizem que aos nove anos tocava de memória o “Cravo Bem Temperado”, de
Bach. Fanny dedicou-se à composição e suas peças aparecem, hoje, entre as do
irmão, assinadas por ele. Kurt Pahlen diz que “Fanny sem dúvida se houvera
tornado uma das pouquíssimas mulheres com gênio criador na música, se o pai não
a houvesse convencido da opinião geral da época de que a arte para as mulheres
só poderia ser adorno e passatempo, nunca uma profissão”.
Já
o pai de Clara Wieck Schumann tinha uma outra posição. Era professor de piano e
logo reconheceu o talento excepcional da filha: determinou mesmo que ela não se
casasse, para poder dedicar-se inteiramente à música. Robert Schumann precisou
recorrer aos tribunais para casar-se co ela, pois Herr Wieck opunha-se
tenazmente ao casamento dos dois, apesar de gostar muito de Robert. De certa
forma, esse pai radical tinha razão. Casada, Clara enfrentou todo tipo de
dificuldades, teve seu tempo dividido entre o trabalho de casa, os seis filhos
e, depois de algum tempo, as sucessivas crises de loucura do marido. Quando ele
morreu, ela passou a sustentar a família, dando aulas de música e concertos
para divulgar a obra dele. Suas composições, de nível respeitável, só agora
começam a sair do esquecimento, mas ainda não têm a divulgação que merecem.
Do
fim do século passado para cá é que se encontra a maior proporção de mulheres
compositoras, ao todo setecentas e sessenta e três (exceto as brasileiras) das
quais algumas encontraram apoio e chegaram a desenvolver carreira brilhante.
Como Germaine Tailleferre, que pertenceu ao Grupo dos Seis, Gena Branscombe,
Luísa Casagemas Poll, Mabel Wheeler Daniels e ainda Cécile Chaminade, autora da
famosa “Scarf Dance”. Lili Boulanger (1893-1918), irmã da famosa Nadia
Boulanger professora de harmonia que lecionou grandes nomes de nossa música
contemporânea – foi uma compositora de extraordinária fertilidade. Com quatro
anos de estudos assimilou os conhecimentos de conservatório. Apesar dos
preconceitos, ganhou o Grande Prêmio de Roma, em 1913. Faleceu aos vinte e
cinco anos e é reconhecida como um gênio inconteste.
NO BRASIL
A
atividade musical da mulher brasileira poderia constituir-se num estudo à
parte, pois o desenvolvimento cultural brasileiro segue rumos bem diferentes do
europeu, ou norte-americano.
No
Brasil Colonial viveu uma certa Dona Mariana, compositora de modinhas; e F.
Kurt Lange, que pesquisou o ciclo do ouro, se refere a Ana Maria dos Santos,
organista cega, e Thomazia Onofre do Lírio, ambas substitutas (em diferentes
ocasiões) de Lobo de Mesquita – pois com a decadência da mineração as despesas
foram reduzidas, substituindo-se os músicos de melhor paga pelos de menor.
No
século passado, a condessa Rafaela Roswadovska encenou no Rio (1862) uma ópera
de sua autoria, “Dois Amores”. Alguns anos depois, uma outra mulher encenava
óperas no Brasil: Chiquinha Gonzaga. Mais conhecida como compositora popular,
era também excelente compositora de operetas; e sua primeira ópera, com libreto
de Artur Azevedo, não foi encenada... por ser música escrita por mulher. Mas as
seguintes setenta e cinco o foram, com sucesso. Fazia também orquestração e foi
a primeira mulher a reger em público no Brasil.
Dinorá
de Carvalho, ainda hoje atuante, acumula prêmios no Brasil e Europa. Talvez seu
nome não seja conhecido pelos brasileiros como mereceria, e como o é no
exterior, mas neste ano de 1976 ela ganhou o prêmio da Associação Paulista de
Críticos de Música, com a sua Sonata.
BARONCELLI, Nilcéia C.
da Silva, jornal Brasil Mulher, São Paulo, ano I, nr. 5, 1976, p.15